quarta-feira, 1 de outubro de 2025

Chafariz de Trovas * 19 *

 

Asas da Poesia * 103 *


Soneto de
FILEMON MARTINS
São Paulo/SP

Morte da árvore
(Lendo o soneto “Árvore morta”, do Padre Saturnino de Freitas)

Árvore triste, que ontem foi bonita,
Não tens mais ramos, frutos e nem flores,
Dos pássaros não és mais favorita
E não abrigas mais tantos amores.

Neste teu tronco já ninguém habita,
Sequer amantes loucos, sonhadores,
Que outrora segredavam na mesquita
De suas folhas vivas, multicores...

Quantas vezes ouviste namorados
Em carinhos e beijos, descuidados,
Como se o tempo não fosse passar.

Hoje, teus galhos secos, ressequidos,
São lembranças de sonhos esquecidos,
Que nunca mais, na vida, vão voltar!
= = = = = = = = =  

Poema de
MARIA LUÍZA WALENDOWSKY
Brusque/SC

Musa Espada 

Como duas bocas vivas, 
que dividem 
a mais tênue luz da vida, 
protegendo ou ferindo. 
Segue a musa da espada, 
avançando sobre tudo 
e todos que a cercam. 
Por ora, 
usa esta arma 
para libertar e trazer a nova vida 
cortando o que une à sua mãe. 
Por vezes, 
a espada machuca, 
mata 
toda a dor que tem dentro de si 
para assim, 
talvez, 
vir a paz terrena 
e alcançar uma vida plena, 
ou cheia de esperança. 
= = = = = = = = =  

Poema de
CAILIN DRAGOMIR
Timisoara/ Romênia

Caminho na Floresta

Entre as árvores um caminho se traça,  
e os raios de sol filtram-se com cuidado,
pintando de ouro o chão enfeitado.
Sussurram os pássaros a vida que passa.  

O rio corre, com risos e cantos,  
pedras e musgos em verde profundo,  
reflete o céu claro, em seus encantos,  
guardando segredos do mundo fecundo.

E ao final da trilha, um lago sereno,  
espelho do céu num azul pleno.  
A natureza abraça com calor e ternura...  
Um convite ao descanso, à alma pura.
(tradução por José Feldman)
= = = = = = = = =  

Spina de
ANA MEIRELES
Belém/PA

Comigo ninguém pode 

Comigo ninguém pode,
Maria era dessas
sem firulas, falava. 

Sentia, dizia, palavras saíam quentinhas.
O Amigo Moura sabia, presenteou-lhe
com simbólico colar que personificava
uma força interior quase inabalável 
de fragilidade, fortaleza, se temperava.
= = = = = = = = =  

Soneto de
VESPASIANO RAMOS
Caxias/MA, 1879 – 1915, Porto Velho/RO

Soneto da Volta

Desde este instante, sem cessar, maldigo,
Aquele instante de felicidade!
Para que tu vieste ter comigo,
Meu amor! Minha luz! Minha saudade?!

Dês que te foste, foram-se contigo
Todos os sonhos desta mocidade...
A tua vinda — fora-me um castigo;
A tua volta — uma fatalidade!

Dês que te foste, dentro em mim plantaste
A ânsia infinita dos desesperados
Porque voltando, nunca mais voltaste...

Correm-me os dias de aflições, cobertos:
Eu entrei para o amor de olhos fechados
E saí para a dor de olhos abertos!
= = = = = = = = =  

Soneto de
MARIA NASCIMENTO SANTOS CARVALHO
Rio de Janeiro/RJ

E-mail

Deletei muitas coisas que me disse,
digitadas em seu computador;
assim que descobri que era tolice
guardar frases bonitas, sem amor.

Temendo que a memória me traísse,
deixei à vista as que me causam dor
para que, nunca mais eu me iludisse
e, em vão, corresse o risco de me expor...

Deletei muita coisa e, na verdade,
não pude deletar toda a saudade
que salvei num arquivo do meu peito...

Pois quanto mais tentava deletar,
mais vinha uma mensagem me avisar
que deletar saudades... não tem jeito...
= = = = = = = = =  

Soneto de
LUÍS VAZ DE CAMÕES
Coimbra/Portugal, 1524 – 1580, Lisboa/Portugal

Soneto I 
         
Enquanto quis Fortuna que tivesse
Esperança de algum contentamento,
O gosto de um suave pensamento
Me fez que seus versos escrevesse.

Porém, temendo Amor que aviso desse
Minha escritura a algum juízo isento,
Escureceu-me o engenho co' tormento,
Para que seus enganos não dissesse.

      Ó vós que Amor obriga a ser sujeitos
A diversas vontades! Quando lerdes
Num breve livro casos tão diversos,

  Verdades puras são, e não defeitos...
E sabeis que, segundo o amor tiverdes,
Tereis o entendimento de meus versos!
= = = = = = = = =  

Poema de
PEDRO DU BOIS
(Pedro Quadros Du Bois)
Passo Fundo/RS, 1947 – 2021, Balneário Camboriú/SC

Calma

Na calmaria cede espaço ao cansaço.
Descansa o silêncio e se desentende
em ritos descontinuados. Desavenças
e calçadas ressoam passos. Acalma
o vento. Reclama ao vento a passagem.
Impressiona o sono em ideias aleatórias
de descobertas e conformismos. No
dito recupera da razão o lídimo saber
sobre a calma na alma despossuída.
Em passos atravessa a hora e despede
do gerânio a flor inacabada. Gira o Sol
em retorno: o dia permanece na explosão
sintética da espera. A calma na calúnia
desdita arrebenta os sinos entre torres.
O desafogo na morte: calma arrebatada
ao espírito. Acalma o corpo ao começo.
= = = = = = = = =  

Soneto de
ANTÔNIO OLIVEIRA PENA
Volta Redonda/RJ

Improviso

Não qual a estrela, na manhã serena,
à flor de um lago, quase a se esconder,
o modo peculiar de me envolver
com o riso à flor da boca, tão pequena!

Nem qual a ave do céu, que, junto ao ninho,
chama contente pelo companheiro,
em cujo peito o amor é mais fagueiro,
e é calmo, pra que haja algum espinho.

É várzea em flor, à noite, escondida,
emanando um perfume sem igual
à minha mal-aventurada vida...

(Quem dera fosse o seu olhar, quem dera!
a pino o sol, sobre esse mesmo val,
numa confirmação da primavera!)
= = = = = = = = =  

Poema de
JOSÉ CARLOS MOUTINHO
Maia / Porto / Portugal

Rio Tejo

Tu que vens de tão longe,
Pequeno, quase criança,
Deslizas, crescendo pela avenida do teu leito,
Ladeado pelas alamedas,
Verdejantes, arborizadas e floridas
Das margens da tua vida,
Tornas-te adulto,
Mais maduro e belo,
Quando os raios solares,
Refletem no teu corpo,
És romântico com o luar,
És sereno quando queres,
Turbulento, quando te provocam,
Podes ser a alegria e a morte,
Exiges respeito!

Não corras tão depressa,
Porque vais perder-te no mar.

Um dia, recusaste-me,
Nas águas do teu ventre,
Devolveste-me à vida,
Toleraste a minha inocência!

Tens a grandeza da tua autoridade
Serás eternamente importante
Marcaste a minha vida.
Meu Rio Tejo!
= = = = = = = = =  

Setilha Sobre o Mar de
MARIA ROSÁRIO PINTO
Bacabal/MA

É bom pegar uma onda
É bom nos banhar no mar.
O mesmo mar que atraí
Sempre vem nos assustar
Nele nos purificamos
Por Yemanjá clamamos
Mãe! Vem nos ajudar.
= = = = = = = = =  

Glosa de
NEMÉSIO PRATA
Fortaleza/CE

MOTE:
Sofredor desde menino 
e tendo o sonho por meta 
quis saber qual seu destino 
diz-lhe o cigano: - Poeta!
CAROLINA RAMOS 
Santos/SP

GLOSA:
Sofredor desde menino 
neste mundo deletério, 
sem instrução, sem ensino, 
seu destino era um mistério. 

Pelo mundo peregrino 
e tendo o sonho por meta 
o menino, em desatino, 
pensou até ser profeta. 

Nesta procura o menino, 
quase louco, pobrezinho, 
quis saber qual seu destino 
consultando um adivinho! 

Vejo uma luz reluzir 
no teu futuro de esteta, 
e posso te garantir, 
diz-lhe o cigano: - Poeta!
= = = = = = = = =  

Poema de
SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESSEN
Lisboa/Portugal, 1919 – 2004, Porto/Portugal

Jardim perdido

Jardim em flor, jardim de impossessão,
Transbordante de imagens mas informe,
Em ti se dissolveu o mundo enorme,
Carregado de amor e solidão.

A verdura das arvores ardia,
O vermelho das rosas transbordava
Alucinado cada ser subia
Num tumulto em que tudo germinava.

A luz trazia em si a agitação
De paraísos, deuses e de infernos,
E os instantes em ti eram eternos
De possibilidades e suspensão.

Mas cada gesto em ti se quebrou, denso
Dum gesto mais profundo em si contido,
Pois trazias em ti sempre suspenso
Outro jardim possível e perdido.
= = = = = = = = =  

Poema de
ARMANDO SILVA CARVALHO
Lisboa/Portugal

A chave inglesa

Era um corpo inteiramente
português.
Transido de ternura
o óleo das suas mãos
protegia-me
o coração.

 Não sei que mecanismo
despertava em si
quando chorava,
fazia crescer a relva,
meus dentes indecisos
como crias
corriam e devoravam.

 Escreveu-me duas cartas
em cima de um trator
e nelas descrevia
em frases simples
o modo tortuoso
que me fez traidor.
= = = = = = = = = 

Silmar Bohrer (Croniquinha) 143

"Até sei de pessoas que propendem a cisco mais do que a seres humanos", escreveu Manuel de Barros. Talvez eu seja um deles. Porque o ser humano permeia entre o tudo e o nada, entre o máximo e o mínimo. E a quantidade deles é grande. 

Bem pensando, tantas vezes me sinto um cisco qualquer, folha seca ao sabor das coisas, um graveto inerte propenso a adubo, passarinho que não alça voo. A sensação de quase nada me incorpora o ócio improdutivo. Não gosto nem do trabalho das formigas - deve ser penoso. De olhar já canso.   

Deve ser sina, a mesma "signa" que veio do latim como "destino inevitável". O destino de pedra que rola e rola e não cria limo. O destino de palavras ao vento, o destino do eco que some na imensidão . . . 

O poeta pantaneiro constatou que "há outros componentes do cisco, porém de menos importância". Ainda bem, nossa vida de ciscos não é tão desimportante assim.
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Silmar Bohrer nasceu em Canela/RS em 1950, com sete anos foi para em Porto União-SC, com vinte anos, fixou-se em Caçador/SC. Aposentado da Caixa Econômica Federal há quinze anos, segue a missão do seu escrever, incentivando a leitura e a escrita em escolas, como também palestras em locais com envolvimento cultural. Criou o MAC - Movimento de Ação Cultural no oeste catarinense, movimentando autores de várias cidades como palestrantes e outras atividades culturais. Fundou a ACLA-Academia Caçadorense de Letras e Artes. Membro da Confraria dos Escritores de Joinville e Confraria Brasileira de Letras. Editou os livros: Vitrais Interiores  (1999); Gamela de Versos (2004); Lampejos (2004); Mais Lampejos (2011); Sonetos (2006) e Trovas (2007).
Fontes:
Texto enviado pelo autor.
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Vladimir Fedorovich Odoievsky (Pobre Gnedka)

Olha, olha, meus amigos, que motorista de táxi malvado, como ele bate na égua!.. Na verdade, ela corre muito mal... Porque é que isto? Oh, pobre Gnedka, ela está mancando...

- Terrível, taxista! Que vergonha: você arruinará completamente sua égua; você a matará até a morte...

– Que necessidade, responde o motorista do táxi. - Ou para mim ou para ela morrer! Hoje é feriado.

– Isso é que um banquete, amável: você deu um passeio e não viu que a égua havia perdido a ferradura: por isso escorregou, tropeçou e chutou a perna. O que é tão inteligente que ela não pode correr? Coitadinha, quaisquer que sejam os passos, a machuca: você não pode correr para cá. E sabes que terás de pagar pelo tratamento dela, pela ferradura, e o dono também te repreenderá. Então você quer ganhar dinheiro a todo custo, visitar, como você diz; Agora é uma bênção, tem muita direção, eles pagam caro... Qual é a culpa da pobre égua? A culpa é tua, rapaz estúpido: porque não cuidaste dela, porque não a viste quando ela perdeu a ferradura?

Mas ele não nos ouve, já está longe. Lá está ele no Neva e continua maltratando a pobre égua, e a égua continua tropeçando, e quaisquer que sejam os passos, dói. Pobre égua! Que tormento é!

E as crianças também correm atrás do trenó e riem tanto da égua quanto do taxista. E ele fica ainda mais irritado e joga a raiva na égua.

Mas diz-me, faz-me um favor, como não envergonhar este senhor gordo que está sentado num trenó! Como não proibir o taxista de torturar a pobre égua! Este cavalheiro gordo se envolveu em um casaco de pele, puxou o chapéu sobre os olhos e sentou-se sentado lá como se nada tivesse acontecido.

“O que me importa”, murmura o cavalheiro gordo para si mesmo, "estou com pressa para almoçar. Deixe o taxista matar sua égua; não é minha égua, o que me importa?"

O que achas disto, meus amigos? Como se, por não ser esta égua, ele devesse olhar indiferentemente para o seu tormento?

Pobre Gnedka! Que pena que penso nela! Conheço esta égua há muito tempo. Lembro-me de como ela ainda era uma potra. Depois, costumava ser que na primavera o sol brilhava, os pássaros esfriavam, o orvalho brilhava nos gramados, o ar fresco e perfumado. Aqui Serko está arando o chão, e nossa potra está correndo ao redor: ou ela vai correr até ele, então ele vai pular para trás, beliscar a grama jovem, e novamente para sua mãe, e novamente ele vai chutar: sua vida foi alegre, então! À noite ele voltará para casa: Vanyusha e Dasha o encontrarão, pentearão sua crina curta e a limparão com canudos. Como Vanyusha e Dasha amavam sua potra! 

Aconteceu que, em vez de correrem sem fazer nada, colhiam grama jovem, colocavam-na em uma caixa e alimentavam sua potra; elas a vestiam em roupas de cama à noite, e não comiam um pedaço de pão durante o dia, para compartilhar com sua amiga. E como a potra os conhecia! Antigamente ele via Vanyusha e Dasha de longe, ia até elas o mais rápido que podia, vinha correndo, parava e olhava para elas como um cachorro. Em tal buraco nossa potra cresceu, nivelou-se e tornou-se uma égua imponente. Então o pai de Vanyusha pensou, pensou e disse fortunas: "É uma pena banir tal égua do arado; vou levá-la para a cidade e vendê-la; eles vão me dar o preço de dois cavalos por isso". 

Assim que disseram do que fizeram: trouxeram a potra para Konnaya, para São Petersburgo, e venderam-na a um motorista de táxi. E como Vanyusha e Dasha choraram, como imploraram ao motorista do táxi que cuidasse de sua potra, que não a obrigasse a carregar cargas pesadas, que não a atormentasse... Eles voltaram para casa muito tristes: faltava alguma coisa. O pai ficou feliz por ter recebido um bom dinheiro por Gnedka, mas os filhos choraram amargamente.

Mas nessas conversas caminhamos por quase todo o aterro... Olha, olha: por que as pessoas estão lotadas lá!.. Vamos embora. Oh, este é a nossa pobre Gnedka! Olha: ela caiu e não consegue mais se levantar; os transeuntes ajudam o taxista a levantá-la; eles a levantarão, ela cairá novamente. Como a perna dela está inchada! O próprio motorista do táxi agora chora amargamente. "Serve-lhe direito", dizes tu; não, não digas isto: ele já vê a sua culpa e já está bastante castigado. Como vai aparecer ao proprietário? E o que fazer agora com a égua? Você não pode deixá-la na rua; ela não pode andar sozinha; precisamos contratar outro cavalo com trenó e colocar a pobre Gnedka no trenó. Mas isso exige dinheiro, mas o taxista não tem: o cavalheiro gordo ficou bravo porque a égua caiu e não pagou nada... Pobre Gnedka! Ela não consegue se mover, enterra a cabeça na neve, respira pesadamente e move os olhos, como se exigisse ajuda. Pobre, ela nem consegue gritar porque os cavalos não gritam, por mais cruel que sofram. "Um motorista de táxi malvado! Por que atormentaste tanto a pobre Gnedka?  

Mas deixemos de censurá-lo, embora ele seja muito culpado, ou melhor, vamos dar-lhe dinheiro, deixemos que ele contrate um amigo para levar Gnedka ao apartamento, vamos acrescentar alguns conselhos: não cavalgue um cavalo manco para a frente e não exija que uma pessoa doente corra como uma pessoa saudável. Um dia destes enviaremos você para saber se nossa égua está melhor.

Em geral, meus amigos, é pecado torturar pobres animais que nos servem para benefício ou prazer. Aquele que tortura animais desnecessariamente é um homem mau. Quem tortura um cavalo ou um cão é capaz de torturar uma pessoa. E às vezes pode ser muito perigoso. Você viu como às vezes crianças más provocam cães e gatos na rua, espancam-nos, amarram paus no rabo; ouça o que aconteceu com essas crianças, quão cruelmente eles foram punidos por sua caça maligna.

Há vários anos, aqui em São Petersburgo, na praça, um cachorro pequeno e quieto, Charlot, caiu atrás do dono: assustou-se, pressionou-se contra a parede e não sabia o que fazer. Então as crianças a cercaram; bem, provocaram-no, bateram nele, jogaram pedras, arrastaram-no pelo rabo. Eles deixaram o pobre cachorro sem paciência, ele correu para eles e mordeu um pouco. O que aconteceu? O cachorro permaneceu saudável, mas as crianças?.. Sabes o que acontece a uma pessoa quando é mordida por um cão raivoso? Ele recebe uma aversão à água, um desejo de morder e morre no mais terrível tormento: é assustador pensar! Vais acreditar? Aconteceu o mesmo com as crianças mordidas: elas enlouqueceram. Sim, meus amigos, este incidente foi uma nova evidência de que quando um cão é provocado por muito tempo e fica com raiva, pode ser tão perigoso morder, como morder um cão raivoso. Não torturem nenhum animal, meus amigos, porque é pecaminoso e mostra um coração maligno, e não torturem cães, nem que seja por brincadeira, porque é ao mesmo tempo mau e perigoso.
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Vladimir Fyodorovich Odoievsky (Moscou/Rússia, 1803 – 1869) foi um filósofo, escritor, crítico musical, filantropo e pedagogo russo. Chegou a ser conhecido como o Hoffmann russo devido ao seu enorme interesse por contos fantásticos e pelo jornalismo crítico. Odoievsky publicou uma série de contos para crianças (por exemplo, A Vila da Caixinha de Surpresas), e historias fantásticas para adultos (por exemplo, Cosmorama e Salamandra). Inspirou-se no conto de Alexander Pushkin, A Dama de Espadas, para escrever uma série de historias semelhantes, sobre a dissoluta vida da aristocracia da Rússia (por exemplo, A Princesa Mimi e A Princesa Zizi). A sua obra-prima foi uma coleção de ensaios e novelas intitulada As Noites Russas (1844), para a qual se inspirou na obra As Noites Áticas de Aulo Gélio. Como crítico musical, Odoievsky propagou o estilo nacional de Mikhail Glinka e seus seguidores. Escreveu muitos artigos sobre temas musicais, e um tratado sobre antigos cantos na Igreja Russa. Johann Sebastian Bach e Beethoven aparecem como personagens em algumas das suas novelas. Odoievsky promoveu a fundação da Sociedade Musical Russa, do Conservatório de Moscovo e do Conservatório de São Petersburgo. (fonte: wikipedia)

Fontes:
Odoievsky, Vladimir Fedorovich. Contos do Avô Irineu. Publicado originalmente em 1841. Disponível em Domínio Público.    
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Arthur Thomaz (Cururuquira)


Enfim, chegara o momento da tão temida pergunta:

— Mãe, pode me explicar como eu nasci assim?

O pai, tomando a frente, responde tentando mostrar altivez.

— Meu filho, o papai colocou uma sementinha na barriga da mamãe, ela germinou e você nasceu.

— Pai, eu sei que vocês fizeram sexo, mas a minha dúvida é porque nasci assim, um cururuquira?

Atarantados, os pais entreolharam-se, permanecendo calados.

— Eu quero saber o porquê não nasci um lindo pavão, um forte leão ou mesmo um esbelto cavalo. Nem pesquisando no Google e sequer na Wikipedia encontrei qualquer referência à espécie Cururuquira.

Ainda estupefato, o pai retrucou:

— Meu filho, nossa família vem de um passado glorioso, onde nossos ancestrais sobreviveram às intempéries, às sucessivas pandemias e aos ferozes predadores. Somos uma raça forte e temos que nos orgulhar disso.

Diante deste quadro, insatisfeito, ele fez as malas e despediu-se, afirmando que só voltaria quando obtivesse respostas às suas dúvidas existenciais.

Adquiriu um exemplar do livro “A origem das espécies”, de Charles Darwin, e foi lendo em sua viagem inicial até as Ilhas Galápagos.

Nada encontrou no livro e tampouco no arquipélago algo relacionado à sua genealogia. Desapontado, mas obstinado em seus objetivos, resolveu empreender uma viagem por todos os continentes em minuciosa pesquisa.

Visitou alguns países da América do Sul, findando sua busca no Brasil. Desistiu quase imediatamente, quando no aeroporto foi cercado por estranhos seres trajando roupas vermelhas e que insistiram em levá-lo a um cartório para trocar seu nome para “Cururuquire”, por causa de uma tal ideologia de gênero que queriam impor no país.

Inconformado com esse absurdo, embarcou no primeiro voo com destino à América do Norte, pensando que ele, preocupado em encontrar as origens de sua espécie, e aqueles idiotas querendo trocar seu gênero.

Desembarcou no México, onde empreendeu muitas buscas em sítios arqueológicos das antigas civilizações astecas e maias, mas nada encontrou de seu interesse.

Foi assediado por “coyotes” que prometiam transportá-lo através da fronteira até os Estados Unidos. Conseguiu escapar desse bando e já no país vizinho reiniciou sua procura.

Visitou bibliotecas de inúmeras universidades, onde encontrou farto material, mas nada interessante que o ajudasse em seu propósito.

Nessa estadia angariou alguns quilos de tanto comer fast food. Em seu próximo destino, o continente africano, deparou-se com centenas de locais para pesquisar, porém, observou que eram semelhantes ao que estudara na América do Sul, o que comprovava a teoria da separação dos continentes em priscas eras.

Nas savanas escapou do ataque de alguns animais selvagens que estranharam sua aparência e embarcou para o “antigo continente”.

Vários países com culturas diversas e algumas dificuldades com as inúmeras línguas faladas tornaram extremamente dificultosos os seus estudos. Em algumas aduanas encontrou problemas para se identificar, pois os agentes não conseguiam constatar sua espécie, entretanto, o deixavam prosseguir, talvez com “pena” dessa “insignificante e inofensiva criatura”.

Isso naturalmente não o deixava feliz, mas facilitava sua locomoção. Na Ásia, as geleiras restringiram muito seu campo de ação. Escapou de alguns policiais russos e bielorrussos que teimavam em considerá-lo um potencial espião imperialista.

Em certo país, cientistas aventaram a hipótese de dissecá-lo para estudos genéticos em um laboratório. E quando estava quase sendo sacrificado, alguns hamsters condoeram-se daquele estranho ente e indicaram-lhe a saída e o melhor momento para a fuga.

Desalentado, alquebrado e já alguns anos mais velho, resolveu voltar à terra natal. Após demorados abra- ços em seus pais, e muito choro derramado, resumiu toda sua inútil procura em poucas frases.

— Meus amados pais, desejo externar a vocês minha gratidão por ser um cururuquira. Depois de conhecer várias espécies diferentes neste mundo imenso, cheguei à conclusão que somos os “esquisitos” mais interessantes e felizes.

— Imaginem se tivéssemos nascido seres frios de alma e materialistas como muitos neste planeta?

Os cururuquiras, a partir desta descoberta, tornaram-se uma das mais fortes e perenes espécies do planeta.
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Arthur Thomaz é natural de Campinas/SP. Segundo Tenente da Reserva do Exército Brasileiro e médico anestesista, aposentado. Trovador e escritor, publicou os livros: “Rimando Ilusões”, “Leves Contos ao Léu – Volume I, “Leves Contos ao Léu Mirabolantes – Volume II”, “Leves Contos ao Léu – Imponderáveis”, “Leves Aventuras ao Léu: O Mistério da Princesa dos Rios”, “Leves Contos ao Léu – Insondáveis”, “Rimando Sonhos” e “Leves Romances ao Léu: Pedro Centauro”.

Fontes:
Arthur Thomaz. Leves contos ao léu: imponderáveis. Volume 3. Santos/SP: Bueno Editora, 2022. Enviado pelo autor 
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segunda-feira, 29 de setembro de 2025

Chafariz de Trovas * 18 *

 

Asas da Poesia * 102 *


Poema de
CASTRO ALVES
Freguesia de Muritiba (hoje, Castro Alves)/BA, 1847 – 1871, Salvador/BA

O crepúsculo sertanejo

A tarde morria! Nas águas barrentas
As sombras das margens deitavam-se longas;
Na esguia atalaia das árvores secas
Ouvia-se um triste chorar de arapongas.

A tarde morria! Dos ramos, das lascas,
Das pedras, do líquen, das heras, dos cardos,
As trevas rasteiras com o ventre por terra
Saíam, quais negros, cruéis leopardos.

A tarde morria! Mais funda nas águas
Lavava-se a galha do escuro ingazeiro...
Ao fresco arrepio dos ventos cortantes
Em músico estalo rangia o coqueiro.

Sussurro profundo! Marulho gigante!
Talvez um — silêncio!... Talvez uma — orquestra...
Da folha, do cálix, das asas, do inseto...
Do átomo — à estrela... do verme — à floresta!...

As garças metiam o bico vermelho
Por baixo das asas, — da brisa ao açoite —;
E a terra na vaga de azul do infinito
Cobria a cabeça co'as penas da noite!

Somente por vezes, dos jungles* das bordas
Dos golfos enormes, daquela paragem,
Erguia a cabeça surpreso, inquieto,
Coberto de limos — um touro selvagem.

Então as marrecas, em torno boiando,
O voo encurvavam medrosas, à toa...
E o tímido bando pedindo outras praias
Passava gritando por sobre a canoa!…
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* jungles = selvas
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Soneto de
BENEDITA AZEVEDO
Magé/RJ

Minha lira

Minha lira interior vibrando ao te encontrar,
Levando-me de volta a dias tão distantes,
Naquele nosso encontro, e a mim sempre garantes
Que foi somente o acaso ali sob o luar...

Que nos levou também ao céu naquele abraço,
ao contar as  estrelas em  todo  esplendor
de uma noite suave  e cheia de sabor...
Nós dois ali sentados perto do terraço.

Mamãe a nos olhar vai chegando à janela,
convida-me a  entrar, é hora de dormir
cordialmente  vais sem  nem se despedir.

Canta meu coração, tal qual naqueles dias,
Ao entrar em meu quarto, enquanto tu partias...
Mas, hoje, meu amor, só eu vou decidir.
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.
Poema de
SILAS CORRÊA LEITE
Itararé/SP

Família

Minha mãe fritava polenta
e convidava a aurora para o banquete

Clarice tinha tranças bonitas
e uma voz de santa

Sueli era uma janela fechada
esperando um príncipe encantado

Erzita era a "irmãe" mais velha
guardiã dos sonhos de nós todos

Paulo e eu brigávamos muito
e tínhamos o destino da luta

(Célio sequer existia ainda
para ser nosso referencial futuro)

Depois meu pai vendeu a casa
Morreu 

virou saudade e nos deixou Célio Ely
de herança

E minha mãe com sua voz de clarinete
ainda alonga orações por nossos sonhos.
= = = = = = = = =  

Quadra Popular

Quando eu te vi, logo disse:
lindos olhos para amar,
linda boca para os beijos
se a menina os quiser dar.
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Soneto de
JOSÉ XAVIER BORGES JUNIOR
São Paulo/SP

O Livro que não leste

De quais ignotos mundos transcendeste,
Para perder-te assim em meu passado?
E ao te perder perdi meu sonho amado...
A quais ignaros mundos pertenceste?

Por que à ignávia* lassidão cedeste?
E por que teu amor tens abrandado
Se por ti eu teria abandonado
De novo toda a vida que me deste?

Em quais ignóbeis mundos te perdeste
Vagando assim ao léu desencantado,
Que ao ferir-me sequer te apercebeste?

Eu sou a sinfonia que fizeste,
E o amor que te dedico, abnegado
É o livro da tua vida, que não leste!
= = = = = = = = = = = = = = =
* ignávia = covarde, indolente.
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Poema de
VIVALDO TERRES
Itajaí/SC

Ao encontrar-te

Ao encontrar-te na rua.
Maltrapilha, quase nua,
Implorando pedaço de pão,
Quem te conheceu não sabe,
Que fostes qual majestade
Morando numa mansão.

Tratavas teus serviçais
Como se fossem animais,
Sem amor ou compostura.
Hoje estás abandonada,
Passas as noites na calçada,
Como mendiga de rua.

Quantas noites recebestes
Esmola e compreensão
Dos mesmos que maltratavas
E arrogante, gritavas:
Vão trabalhar malandrões!

Os mesmos, indignados,
Mas pobres e necessitados.
Fingiam não te escutar
Pois eram gente honesta
Precisavam do trabalho
Pra seus filhos sustentar.

E tu, com arrogância,
Não pensavas que ferias
a alma e o coração
Daqueles que trabalhavam,
Cujo suor derramavam
Para ganharem seu pão..

Hoje vives abandonada,..
Cansada, desmemoriada,
Talvez sintas dor profunda.
Tua casa é a marquise,
Tua cama é a calçada,
Pois és mendiga de rua. 
= = = = = = = = =  

Soneto de
OLIVALDO JÚNIOR
Mogi-Guaçu/SP

O segredo de um tesouro

“Um bom amigo, que nos aponta os erros e as imperfeições e reprova o mal, deve ser respeitado como se nos tivesse revelado o segredo de um oculto tesouro.” 
(Sidarta Gautama - BUDA) 

O segredo de um tesouro 
não está no que se tem, 
mas no que nos vale ouro: 
ser a luz irmã de alguém. 

Toda luz é mais que o louro 
das vitórias de um 'ninguém', 
um senhor que tira o couro 
dos irmãos e o seu também. 

Vem cansado e sem abrigo 
este irmão aqui presente, 
sem a luz que mais persigo... 

Um tesouro é um bom amigo, 
um irmão que o faz contente, 
bem cantante, vento ao trigo!…
= = = = = = = = =  

Poema de
VINÍCIUS DE MORAES
Rio de Janeiro/RJ, 1913 – 1980

A carta que não foi mandada

Paris, outono de 73
Estou no nosso bar mais uma vez
E escrevo pra dizer
Que é a mesma taça e a mesma luz
Brilhando no champanhe em vários tons azuis
No espelho em frente eu sou mais um freguês
Um homem que já foi feliz, talvez
E vejo que em seu rosto correm lágrimas de dor
Saudades, certamente, de algum grande amor

Mas ao vê-lo assim tão triste e só
Sou eu que estou chorando
Lágrimas iguais
E, a vida é assim, o tempo passa
E fica relembrando
Canções do amor demais
Sim, será mais um, mais um qualquer
Que vem de vez em quando
E olha para trás
É, existe sempre uma mulher
Pra se ficar pensando
Nem sei... nem lembro mais
= = = = = = = = =  

Soneto de
HERMES FONTES
Buquim/SE, 1888 – 1930, Rio de Janeiro/RJ

Luar 
(em Gênese)

Noite ou dia?! Ilusão... É noite. A Natureza
tem um pudor de noiva, ao beijo do noivado:
sonha, velada por um véu diáfano, e presa
de um sonho branco, um sonho alegre, iluminado.

A Lua entra por toda a parte, clara, acesa...
Desabrocham jasmins de luz, de lado a lado...
E o luar – vê bem: dirás que é o óleo da Tristeza
diluído pelo céu... pela terra entornado...

E há nos raios da Lua – a um tempo, hastis e lanças,
corações a sangrar feridos do infortúnio,
flores sentimentais do jardim das lembranças...

A ave do Sentimento as asas bate e espalma...
e, enquanto se abre aos céus a flor do Plenilúnio,
abre-se, dentro em nós, o plenilúnio da Alma...
= = = = = = = = =  

Poema de
GONÇALVES DIAS
Caxias/MA, 1823 – 1864, Guimarães/MA

Canção do exílio

Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o sabiá;
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.

Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas tem mais flores,
Nossos bosques tem mais vida,
Nossa vida mais amores.

Em cismar, sozinho, à noite,
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o sabiá.

Minha terra tem primores,
Que tais não encontro eu cá;
Em cismar - sozinho, à noite -
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Não permita Deus que eu morra,
Sem que eu volte para lá;
Sem que desfrute os primores
Que não encontro por cá;
Sem qu'inda aviste as palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
= = = = = = = = =  

Grinalda de Trovas de
FILEMON MARTINS
São Paulo/SP

Mulher

Segue uma estrada florida
quem, na verdade, tiver
a glória de ter, na vida,
um coração de mulher!
Filemon Martins

Quero seguir meu destino
com minha cabeça erguida,
quem ama o bem, imagino,
segue uma estrada florida.

Segue uma estrada florida,
quem é da paz e requer
a esperança protegida,
quem, na verdade, tiver.

Quem, na verdade, tiver
uma paixão desmedida,
felicidade é mister
a glória de ter, na vida.

A glória de ter, na vida,
um amor minha alma quer,
numa paixão incontida
um coração de mulher!
= = = = = = = = =  

Hino de 
Itaboraí/ RJ

Pedra Bonita, 
foi assim que te chamaram
Certa vez em Guarani
Terra bendita, 
é assim que hoje 
te chamo minha Itaboraí

Tens uma porta aberta para o mar
És a janela do nosso país
Quem vem de longe aprende a te amar
Quem nasce aqui é a tua raíz

Com a argila do teu solo
O calor do teu colo
E o suor do teu povo

Vamos seguir com firmeza
E ajudar com certeza
A construir um mundo novo

És um eterno poema
Que tem como tema a felicidade
Escrito pelo criador, 
que te transformou nesta bela cidade (Bis)

Teus laranjais, 
teus imortais
A tua história é um hino de amor
És a própria paz, 
porque sempre estás 
nas mãos de nosso senhor (Bis)

Itaboraí, Itaboraí!
= = = = = = = = =  

Soneto de
BERNARDO TRANCOSO
Vitória/ES

Ser feliz

Vida é viver, é ser alguém, é ser ninguém,
Quando quiser; é não mentir, sempre sorrir,
Morrer de rir, quando puder; é querer bem,
Homem, mulher, um ser qualquer, sem resistir;

Não desistir, nunca chorar, só quando tem
Alguém pra ouvir; sonhar, lutar, pra descobrir
O que é amar, o que é sentir; saber também
Que é grande o amor, elevador, sempre a subir;

Crescer, ter fé, firmar o pé, pisar no chão
E caminhar; Andar e crer, buscar, querer,
Na imensidão, o teu lugar; ter mente exposta

E, a quem te gosta, essa canção, teu coração;
Responder "não", pra quem te diz: "Ser ou não ser:
Eis a questão"; pois SER FELIZ: eis a resposta.
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Fábula em Versos de
JEAN DE LA FONTAINE
Château-Thierry/França, 1621 – 1695, Paris/França

O passarinheiro, o açor* e a cotovia

A injustiça, o rigor desculpam-se em geral
Citando como exemplo a quantos fazem mal,
Ninguém deve esquecer a regra tão cediça:
«Respeite sempre os mais quem atenções cobiça».

Certo dia um campónio armava aos passarinhos —
Vem despontando abril, estão já sós os ninhos,
A grande natureza há muito que não dorme,
O campo todo em flor ostenta um luxo enorme,

Imprime vibrações no ambiente perfumado,
O constante esvoaçar do inquieto mundo alado —
E o homem de atalaia...
De repente sorri dizendo: — «Talvez caia!»

— Cair o quê? Não sei — objeta-me o leitor.
Era uma cotovia. A tola, a sensabor
Dispunha-se a trocar a boa liberdade
Pela rede traiçoeira, e até, que ingenuidade!

Vinha cantando alegre a procurar a morte:
Ou se é, ou não se é forte.
Neste ponto um açor, que andava pelos ares,
Faminto, peneirando em voltas circulares,

Avista a pobrezinha e rápido qual seta
Silvando fende o espaço em breve linha reta,
Cai sobre a cotovia, empolga-a rudemente,
Aperta-a, despedaça-a em fúria recrescente.

Que bárbaro glutão!
Viu tudo o caçador e resolveu-se então
A puxar o cordel da pérfida armadilha,
Que ao distraído açor enreda, envolve e pilha.

Colhido de improviso o bicho quer soltar-se,
Mas logo dissuadido, usando de disfarce,
Murmura em voz mui doce:
«Meu caro caçador, sem dúvida enganou-se,

Podia lá prender-me! Eu nunca lhe fiz mal!...»
Replica-lhe o campónio: «E o pobre do animal
Que aí tens, fez-te algum? Não me responderás?»
O açor quis responder, porém não foi capaz.
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* Açor = ave de rapina, semelhante ao falcão.
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